Em comemoração a estreia do Godzilla Minus One em terras brasileiras, preparei um texto onde vamos discutir as diferenças de representação entre o Godzilla do Japão e o dos Estados Unidos.
Então, antes de começarmos, gostaria de agradecer imensamente a todos que participaram da enquete pelo Threads e ajudaram a decidir o tema desse post especial. Meu muito obrigado a todos! Agora, que tal falarmos um pouco sobre o Rei dos Monstros? Ou, mais especificamente, sobre as diferenças entre as representações do Godzilla no Japão e nos EUA?
Ah, só um aviso: todos os artigos citados foram traduzidos por mim, certo? Então, caso tenham ficado com alguma dúvida, ou caso o mesmo tenha se apresentado de modo confuso, a culpa é toda e exclusiva daquele que vos escrever.
Agora, sim, podemos começar:
Primeiros passos:
Para quem não conhece o personagem, segue aqui uma breve introdução: estreando em 1954 no filme Godzilla (ゴジラ) sob a direção de Honda Ishiro (1911-1993), o filme apresenta as consequências de um teste com armas nucleares norte-americanas, que desperta o monstro do título, que se lança em uma jornada de destruição sobre Tóquio. Incapazes de deter o monstro radioativo com os métodos à sua disposição, cabe ao Dr. Daisuke Serizawa
Godzilla, Serizawa sabe que sua arma é terrível demais para ser deixada no mundo e assim, se sacrifica junto com o monstro, levando consigo todo o conhecimento a respeito dessa super-arma.
Apesar de ter morrido nesse primeiro filme, o sucesso do mesmo fez com que fosse apenas uma questão de tempo até que a Toho decidisse trazer o personagem de volta, já em 1955, em Godizlla Contra Ataca / O Monstro de Fogo (ゴジラの逆襲), que não só traz a primeira aparição de Anguirus, como também dá início a longa tradição de combates que colocará o Rei dos Monstros diante de uma nova criatura a cada filme.
Desde então, o Rei dos Monstros apareceu em cerca de 38 produções japonesas, em 6 décadas de produções que perdura até os dias atuais, em uma série de reinterpretações que mantiveram a relevância do personagem na cultura japonesa - e é sobre isso que vamos falar já já.
Apesar de seu sucesso no Japão, Godzilla não teve o mesmo desempenho nos Estados Unidos. Ainda que tenha adquirido um status cult ao longo dos anos - sendo inclusive uma figura recorrente no meio cinematográfico desde 2014, com o Monsterverse - o personagem nunca chegou a ser bem compreendido pelo público norte-americano. Essa falta de compreensão data desde 1956, ano em que seu primeiro filme foi lançado nos EUA, como nos é apresentado no artigo It’s (Still) Alive! A History of Godzilla in the United States de Rebecca Jane Morgan:
Quando a franquia Godzilla foi lançada pela primeira nos cinemas de Nova York, em 27 de Abril de 1956, a opinão pouco elogiosa do críticio de cinema do New York Times Bosley Crowther foi amplamente compartilhada. Godzilla: Rei dos Monstros!, como o filme foi chamado nos Estados Unidos, foi visto como uma imitação sem graça de um filme americano de monstro gigante lançado 23 anos antes: King Kong. O espetáculo de um homem vestido em uma fantasia destruindo uma maquete de Tóquio pareceu bizarra e sem sentido para os espectadores norteamericanos, levando seus críticos a condenar o filme como uma farsa sem sentido. A arrecadação de U$ 2,5m no circuito norte americano foi o suficiente para colocá-lo no topo dos filmes-B de verão, mas apenas isso.
De fato, ainda sobre a percepção do personagem e da sua franquia aos olhos norte-americanos, Morgan prossegue:
A série é normalmente julgada pelos padrões de um típico filme de ação ou de desastre: nada além de uma boa fonte de emoções baratas. As próprias decisões estilísticas e narrativas que são uma parte integral da franquia, assim como razão de seu sucesso no Japão, foram interpretadas como um jeito ruim de se fazer cinema.
Uma discrepância tão grande de percepções é, sem sombra de dúvida, obra das diferenças presentes entre as culturas nipônicas e norte-americana, entrando no velho dilema entre Oriente Vs. Ocidente - diferenças essas que já foram abordados de formas bem interessantes por autores como Tanizaki Junichiro em seu livro Em Louvor das Sombras, ou mesmo por Okakura Kakuzo em seu O Livro do Chá . Mas, onde, exatamente, poderíamos encontrá-las no caso do Godzilla? Quais seriam as diferentes percepções entre esses dois lados do mundo com relação a um monstor gigante que permite a fama incondicional de um lado, e uma visão tão pejorativa de outro?
Bem, é justamente essa a questão vou tentar abordar no texto de hoje. Longe de trazer uma resposta definitiva sobre o assunto, porém, gostaria antes de levantar um debate saudável sobre o impacto da cultura na percepção de uma obra. Se vou conseguir isso ou não, aí já são outros quinhentos.
Podemos começar?
Gojira:
Então, a primeira coisa - e sem sombra de dúvidas a mais importante - que devemos levar em conta ao falarmos sobre as diferenças entre as versões japonesas e norte americanas de Godzilla está na história desses dois países. Mais especificamente, na história do Japão, marcada pela grande tragédia que foi os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki.
Ocorridos entre 6 e 9 de Agosto de 1945, o ataque nuclear por parte dos Estados Unidos deixou uma profunda marca na história, cultura e psique japonesa, influenciando uma série de produções até os dias de hoje. Apesar de ser um país já acostumado com eventos catastróficos como tsunamis e terremotos, a destruição das bombas foi um evento sem precedentes na história do país - e do mundo - traumatizando não só uma geração, mas também uma cultura. De Godzilla à Akira, podemos perceber reflexos dessa grande tragécia, como apresentado no artigo Monster Island: Godzilla and Japanese scifi/horror/fantasy de Philip Brophy:
Toda vez que Neo-Tokyo [referência à maquete da cidade] é destruída, parece que um filme mudo de Hiroshima é sobreposto de modo subliminar à cena, derrubando o binário Nós-Eles e trazendo um senso comum de arrependimento peculiar à sci-fi/fantasia japoneses. (2000, pp. 39-40)
Mais especificamente no caso de Godzilla, o próprio Honda relata o impacto de sua visita à Hirsohima um ano depois do ataque, como apresentado no artigo de Morgan:
Havia uma atmosfera pesada ali - e um medo de que o mundo estivesse acabando. Essa se tornou minha base [para Godzilla].
Mas talvez seja Nancy Anisfield, em seu artigo de 1995, Godzilla/Gojiro: Evolution of the Nuclear Metaphor, quem apresenta aquilo que considero ser um dos melhores resumos dessa ideia:
Os filmes de Godzilla igualam o monstro com a bomba atômica, e Noriega apresenta como as versões japonesas, ao repetir simbolicamente o trauma de Hiroshima, estabelecem o monstro como um "arquétipo do horror Japonês que explica o presente". (p. 53)
De fato, ao assistirmos o primeiro filme de Godzilla, é impossível não percebemos a analogia entre essas duas entidades, em particular nas cenas que apresentam a destruição causada pelo monstro, ou nas que seguem ao seu ataque, com as cidades arrasadas, as vítimas atulhando os corredores de hospitais, e as equipes vestidas com roupas de proteção e armadas com contadores geigers.
O próprio final o filme, com a morte tanto do monstro quanto do cientista, é também uma reflexão acerca do contexto atual do país, visto que, desde sua derrota na II Guerra, o Japão deu início a uma corrida cinetífica que propulsionaria o país e que, entre seus desdobramentos, teve a implementação da energia nuclear como parte da matriz energética nipônica, este um outro elemento que passaria a assombrar a terra do sol nascente, como apresentando no caso mais recente de Fukushima.
Enfim, toda essa apresentação serve para nos situar naquilo que considero ser o fato principal ao analisarmos a questão do Godzilla, a saber, que o mesmo é uma resposta ao trauma nuclear japonês.
E é aqui que entra o problema com as adaptações do personagem para outras mídias.
Godzilla:
Tendo sido lançado nos EUA em 1956, dois anos após sua estreia, Godzilla foi um personagem que nunca chegou a ser plenamente assimilado pelo público norte-americano. Pois, ainda que o país tenha tido um grande ciclo de seu cinema dedicado ao terror nuclear, sua visão se aprsesentada de modo completamente diferente da visão japonesa. Como apresenta Anisfield, a mentalidade por trás desses filmes é outra:
Ela [Susan Sontag] delimita especificamente que o "despertar acidental de um monstro incrivelmente destrutivo que hibernava na terra desde tempos pré-históricos é geralmente uma metáfora óbvia para a Bomba" (218). Assim, para o público norte-americano, a catarse serve como uma forma de expurgar as emoções que, por sua vez, representam a culpa pela criação nuclear. Godzilla, Mothra, Ghidrah, Ebirah, as formigas gigantes de O Mundo em Perigo, o polvo de O Monstro do Mar Revolto, a tartaruga pré-histórica propelida à jato Gamera, pássaros mutantes, tarântulas, serpentes marinhas e dinossauros servem como metáforas para o poder nuclear e suas armas.
(...) Os humanos criaram as bombas. As bombas criaram os monstros. Os monstros punem os humanos. Depois de muita punição, os humanos triunfam e são deixados em paz. Assim, Sontag diz, mesmos os protagonistas desses filmes não "parecem totalmente inocentes" (Sontag, 215), implicando na culpa coletiva pela criação das bombas nucleares. Para o espectador que se identifica com os protagonistas, então, a culpa subconsciente pela criação da bomba é amenizada pela catarse que vem pela punição no formato de destruição apresentada no filme. E, com o final otimista, se reafirmam os valores da sociedade (1995, pp.55-56)
Privados de um grande trauma nacional como o de Hiroshima e Nagasaki, a percepção norte-americana é pautada pelo senso de confronto, onde, ainda que sejam vítimas do horror, os protagonistas possuem a garra e o senso de ação para enfrentar e resolver o problema que se encontra diante deles. Não só isso, o momento histórico da década de 1950 é marcado pelo confronto da Guerra Fria, sendo os medos de invasão e domínio prioridades maiores no imaginário norte-americano.
Interpretado como um filme B, Godzilla passou a margem do interesse dos EUA, ainda que viesse a se tornar uma figura constante no meio cultural, estrelando, por exemplo, uma linha de quadrinhos d a Marvel Comics de 1977 a 1979, e uma série animada produzida pela Hanna Barbera de 1978 a 1981. No entanto, o Rei dos Monstros só apareceria novamente nas telas de cinema em 1998, no filme dirigido por Roland Emmerich.
Polêmico, para dizer o mínimo, esse filme é a primeira tentativa de adaptação cinematográfica norte-americana, e já aqui conseguimos ver os problemas de adaptação atrelados ao personagem. Fruto da mesma mente responsável por filmes como Independece Day (1996) e o Dia Depois de Amanhã (2002), Godzilla é reduzido a um filme de tragédia, onde um monstro gigante - totalmente descaracterizado em termos de design - causa destruição sem sentido na cidade de Nova York enquanto uma equipe de cientistas e agentes do governo tenta impedi-lo. Apesar de manter em sua história o contexto nuclear - desta vez deslocado e adaptado para o contexto geopolítico dos anos 1990, como apresentado por Morgan - é o espetáculo de caos, destruição e ação que tomam as rédeas do filme, afastando-o, assim, de qualquer tentativa de mensagem.
Com a péssima recepção crítica, as sequências planejadas para o filme foram descartadas - apesar do mesmo ter tido um ótimo desenho animado - com o Rei dos Monstros só retornando às telas de cinema em 2014, através da Legendary Pictures e seu Monsterverse, onde o personagem, assim como os demais kaijus que aparecem em cena, se torna uma força de equilíbrio do bem estar da Terra, servindo como um guardião para uma raça humana que precisa aprender a preservá-lo ou enfrentar a extinção.
Ainda haja aqui uma tentativa, por mais rasa que seja, de aproximar Godzilla de uma temática e dilemas contemporâneos, podemos perceber aqui um outro traço do cinema norte-americano, que é a justificação do monstro. De fato, no Monsterverse, o Rei dos Monstros é transformado em um herói ou, pelo menos, em uma figura com a qual o público pode torcer ou desejar o seu sucesso, caindo, assim, no cliche hollywoodiano de mocinhos vs. bandidos.
E é aqui que está a segunda chave da nossa discussão.
Um conto de dois Godzillas:
Então, acredito que agora já temos aqui as informações que precisávamos para entender um pouco melhor a questão dessa discrepância de representações do personagem.
Desprovido da memória traumática de um ataque radioativo em sua própria terra, e possuindo uma tendência a criar filmes que seguem uma estrutura extremamente padronizada, com heróis e vilões claros e bem definidos, com a ausência de grandes nuances, o cinema norte-americano falha em conseguir captar a essência de Godzilla em suas produções. De fato, como bem define Anisfield - em uma passagem que já apresentados acima:
Respondo à sua própria pergunta "Por que os japoneses simpatizam com [Godzilla] enquanto os norte-americanos conseguem apenas vê-lo como uma figura cômica?" (Noriega 64), Chon Noriegan primeiro define as diferenças existentes no conceito do Outro para japoneses e norte-americanos: o pensamento Ocidental mantém o Outro separado e recluso como uma forma de definir o EU por meio do contraste. O pensamento japonês, por sua vez, buscar manter tanto o EU quanto o Outro dentro da sua cultura, imergindo o EU no Outro (Noriega 68). Nos filmes de Godzilla, o posicionamento do monstro como "Outro" diferencia as produções japonesas das norte-americanas.
Os filmes de Godzilla equiparam o monstro à bomba atômica, e Noriega mostra como as versões japonesas, ao repetirem simbolicamente o trauma de Hiroshima, estabelecem o monstro como um "arquétipo do horror japonês que explica o presente." Já para os norte-americanos, o Outro precisa ser vencido, e a morte de Godzilla "reprime a culpa e as ansiedades norte-americanas a respeito das armas nucleareas" (Noriega 68). Os japoneses aceitam a bomba/monstro em sua consciência cultural, ao passo que os estadunidenses o rejeitam. (1995, p.53)
Assim, é apenas através da justificação de Godzilla como personagem que o cinema norte-americano consegue adaptá-lo. Seja apresentando-o como um mero desastre ambulante que precisa ser combatido, seja como um herói da Terra, o Rei dos Monstros precisa ser sempre justificado e apresentado sob alguma luz que permita que o mesmo seja visto dentro dos padrões do modelo cinematográfico hollywoodiano, ocupando, ora o papel de monstro que precisa ser vencido (vilão), ora o papel de em um combate que luta pela sobrevivência da raça humana (herói).
Essa última tendência, mais recente, talvez seja a representação mais próxima que o cinema norte-americano conseguiu da ideia do personagem. No entanto, a forma rasa como os temas ambientais são abordados, assim como a lógica extremamente complexa por trás dos kaijus, afasta o Godzilla americano de sua versão contraparte nipônica.
Isso, por sua vez, levanta um outro tópico: qual seria, então, a essência do Godzilla? Ou pelo menos, a essência do Godzilla japonês?
Bem, como discutido acima, Godzilla é uma representação da destruição radioativa, já por isso carregando uma forte carga símbolica e cultural para o país. Aliado à isso, o Rei dos Monstros é, antes de mais nada, um ícone do horror - o horror radioativo, o horror da destruição em massa, horror da própria impotência humana perante suas próprias criações - e, assim sendo, é o tipo de criatura que prescinde de uma lógica ou explicação inerente.
Parente dos grandes desastres naturais, onde a natureza demonstra a completa extensão de seus poderes, não há uma razão ou motivo que justifique Godzilla, ele simplesmente ocorre, destruindo o que se encontra ao seu redor e deixando para trás de si o horror e o choque de nossa impotência perante forças que estão além de nosso controle.
E é nisso que os filmes norte-americanos pecam.
Ao apresentá-lo como herói, ou como um vilão, os filmes mudam a ênfase nativa do personagem, transformando o que deveria ser um filme de terror em um filme de ação e aventura e, assim, descaracterizando totalmente o personagem. Ainda que esse venha a ser um traço compartilhado também com algumas encarnações cinematográficas japonesas do personagem - em particular após Ghidrah, O Monstro Tricéfalo (三大怪獣 地球最大の決戦, 1964) em quando é introduzido o arqui-inimigo de Godzilla, o King Ghidorah - é importante notar que essa é uma consequência da evolução do personagem e da própria indústria cultural japonesa, sendo uma decisão tomada de modo a melhor encaixar o personagem dentro dos nichos de marketing da Toho, e dentro do próprio zeitgeist da época, não sendo, portanto, uma "falha" de interpretação, como no caso norte-americano. Tanto que, toda vez que há uma reintrodução do Godzilla em uma nova Era, o mesmo é sempre representado como o espectro do horror radioativo, como no caso de Shin Godzilla (シン・ゴジラ,2016), este produto direto do desastre na usina de Fukushima, em 2011.
Assim, por mais que o ciclo de Godzilla sempre apresente suas mudanças, o personagem sempre se vê retornando ao seu cerne, que é o símbolo máximo do horror radioativo, algo que o cinema norte-americano nunca conseguiu captar.
Pois bem, chegamos ao fim deste artigo e espero que tenha aproveitado o percurso até aqui. Abaixo, vou deixar alguns materiais em anexo que podem te ajudar caso você queira pesquisar ou ler mais sobre o assunto.
Quanto aos vídeos, separei um episódio do What Happened? onde é analisada a história por trás da produção do filme de 1998 do personagem. Além dele, adicionei um outro vídeo que aborda uma discussão bem interessante sobre as diferenças entre a narrativa oriental e a ocidental.
Lembrando que a partir da data de publicação desse texto, Godzilla Minus One já deve ter estreado nos cinemas, então vão lá dar uma força para que mais filmes do Rei dos Monstros possam ser trazidos até nossas terras.
E o resto é silêncio.
Referências:
Artigos:
Philip Brophy Monster Island: Godzilla and Japanese scifi/horror/fantasy, 2000, Postcolonial Studies, 3:1, 39-42
Nancy Anisfield (1995) Godzilla/ Gojiro: Evolution of the Nuclear Metaphor, The Journal of Popular Culture, 29(3), 53–62
Rebecca Jane Morgan. It's Still Alive: Godzilla in the United States, 2020, Medium:
Godizlla Vol. 1, Marvel Fandom:
Godzilla (1978 TV Series):
Vídeos:
Godzilla (1998) - What Happened? - Matt McMuscles:
Western Vs. Eastern Storytelling - What´s the Difference? ( A General Overview) -Literary Devil: