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Resenha - Nonnonba, de Shigeru Mizuki

Atualizado: há 3 dias

Parte biografia, parte ficção, Nonnonba, de Shigeru Mizuki, apresenta a história da infância e crescimento do autor no interior do Japão, assim como a origem de sua paixão pelos youkais.


Nonnonba detalhe da capa

Iniciando com as resenhas de 2024, trago aqui um dos mangás que foi um dos achados de 2023: Nonnonba, de Mizuki Shigeru(1922-2015), um autor que, ainda pouco divulgado no Brasil, é um dos gigantes da indústria do mangá, tendo sido contemporâneo de autores como Tezuka Osamu (1928-1989) e tido um papel de extrema importância no que diz respeito à popularização - e preservação - dos youkais.


Ok, talvez tenha um pouco de informação demais nesse último parágrafo. Mas não se preocupe que vamos decompor esse texto, primeiro apresentando um pouco da vida e obra de Mizuki, para então falarmos um pouco mais sobre os youkais e, por fim, falarmos de Nonnonba propriamente dita.


Vamos lá?


Mizuki Shigeru - Vida e Obra:


O segundo de três filhos, Mizuki Shigeru nasceu em 8 de março de 1922 na cidade de Osaka, sob o nome de Mura Shigeru. Apesar de ter nascido em uma cidade grande, o autor passou boa parte de sua infância em Sakaiminato, cidade costeira


Nascido como Mura Shigeru, Mizuki foi o segundo de uma família de três filhos. Apesar de ter nascido na cidade de Osaka, o autor passou grande parte de sua infância na cidade de Sakaiminato, uma experiência que moldará bastante suas produções futuras.


Shigeru Mizuki

Desde a infância, duas características sobressaíam no jovem Shigeru, suas habilidades artísticas, que levaram seus professores a organizar uma exposição com seus trabalhos ainda na sua época de aluno na escola primária, e seu fascínio pelo sobrenatural. Nesse último ponto, o jovem teve a grande influência de Fusa Kageyama, uma moradora de Sakaiminato e conhecedora das histórias do folclore japonês, sendo esse seu primeiro ponto de contato com o mundo dos fantasmas e youkais.


Apesar de seu pendor artístico, Mizuki se viu arrastado para a II Guerra Mundial, onde foi forçado a servir como soldado na Papua Nova Guiné. Contrário à guerra, o autor sofreu duplamente durante sua estadia no exército, seja pela truculência e brutalidade dos oficiais japoneses, seja pelas próprias condições ambientais, tendo contraído malária e testemunhado a morte e mutilação de seus amigos e colegas de batalhão. Dessa longa série de infortúnios e desgraças, no entanto, talvez nenhum tenha sido tão fortemente sentido ou impactante quando a perda de seu braço esquerdo. Pego em um bombardeio dos Aliados, Mizuki foi gravemente ferido e, ainda que tenha escapado da morte, perdeu o seu braço dominante, o que mais tarde o forcaria a ter que aprender a desenhar com o outro braço.


Desnecessário dizer que toda essa experiência teve um impacto marcante não só sobre o autor, como também em toda a sua obra.


De volta ao Japão, Mizuki se viu trabalhando em uma série de empregos, que incluíram desde zelador à arista de kamishibai - uma modalidade de teatro que se vale de ilustrações e de um narrador para a contação da história, como você pode ver no vídeo abaixo da Japan House:


No entanto, uma vez que a popularidade do gênero começou a cair, o autor se viu migrando para uma nova mídia que, em pouco tempo, se tornaria uma verdadeira indústria, o mangá.


Apesar de ter iniciados suas publicações em 1958 com uma história de super-heróis - com Rocketman, uma cópia clara do Superman - será com o terror e o sobrenatural que Mizuki irá encontrar seu lugar. Fortemente influenciado pelos quadrinhos da Era de Ouro, e em particular dos quadrinhos de terror da EC Comics, essa vertente do autor irá aparecer já em 1960, com a publicação de Hakaba Kitarou, algo que poderia ser traduzido como Kitarou do Cemitério. Nessas histórias, criadas com base na lenda da Kosodate Yuurei, a mãe fantasma que vem para pedir ajuda para seu filho recém-nascido, Shigeru apresentou ao mundo o personagem Kitarou, um menino youkai que vive no mundo dos humanos, atuando, muitas vezes, como um mediador entre os conflitos desses dois povos.


Esse início sinistro do que viria a ser a futura série Gegege no Kitarou, apresenta também outras duas características marcantes do autor, sua tendência a trabalhar com personagens que fogem do padrão. De fato, Kitarou, assim como muitos dos personagens de Mizuki, não são a representação típica dos protagonistas de mangá, se aproximando muito mais da figura dos excluídos, dos outcasts, do que do herói padrão. Sua própria escolha pelo resgate dos youkais, figuras até então começavam a se perder no imaginário do povo japonês, representa também sua preferência por esse tipo de personagem. Não só isso, a própria situação de extrema pobreza que rodeia Kitarou - seja ela de seus pais youkais, que morrem em decorrência da falta de recursos, seja dos pais humanos que o adotam - um retrato da sociedade japonesa no pós-guerra, reforça esse aspecto de personagens marginais, além de representar um grande interesse de Shigeru pelas camadas mais humildes da população.


Arte de Gegege no Kitarou por Shigeru Mizuki

A popularização da série será não só um ponto de partida para a produção de histórias de terror/sobrenatural na indústria de mangás, abrindo o caminho para obras como Yu Yu Hakusho, Bleach e JuJutsu Kaisen, por exemplo, como também uma das grandes forças responsáveis - quiçá a grande força responsável - por trazer a popularização das figuras dos youkais, criaturas do folclore japonês, para a cultura pop, sendo, assim, um trabalho de resgate por parte de Mizuki Shigeru dos contos e lendas ouvidos em sua infância, o que, por sua vez, irá nos revelar um outro lado da produção artística do autor, a saber sua vertente como historiador.


Pois, além de pesquisador das histórias folclóricas - tendo inclusive viajado por todo o Japão em uma jornada para registrar essas histórias diretamente da boca do povo - o autor também teve um trabalho ativo na produção de mangás sobre a história do país, retratando, por exemplo, temas polêmicos como a atuação de seu país nos países vizinhos durante a Segunda Guerra Mundial, entrando em conflito com os interesses do governo japonês.


Pois bem, agora que já apresentamos o autor, que tal falarmos um pouco sobre seu grande interesse: os youkai?


Youkais:


Gashadokuro por Shigeru Mizuki

Ao longo desse texto, já falamos bastante sobre youkais, mas o que exatamente seriam essas criaturas?


Bem, essa é uma questão bem complexa, uma vez que não só não existe um consenso nem mesmo entre os próprios japoneses a respeito do que seria ou não um youkai, como também pela diversidade de criaturas existentes. Assim, enquanto temos espíritos e fantasmas que são considerados youkai, temos também objetos inanimados que ganham vida - herança do passado xintoísta do Japão - assim como vegetais, fontes e animais. Isso sem considerar divindades e outros seres.


Mas, vamos por partes, sim? Como explica Matthew Meyer , artista e escritor do site Yokai.com temos que:


Youkai, 妖怪 , são criaturas, e fenômenos, estranhos e de ordem sobrenatural que pertencentes ao folclore japonês. A palavra. é a combinação dos kanjis 妖 (you – atraente, cativante, fascinante) e 怪 (kai - mistério, maravilha).

Quanto à confusão inerente ao termo em si, Meyer prossegue:


A definição do que exatamente constituí, ou não, um youkai é um ponto extremamente complicado. Até mesmo em japonês há essa dificuldade de definição. Afinal, ao longo das várias era da história do Japão, uma série de palavras foi utilizado para designar as forças sobrenaturais que vagam pelo mundo: bakemono, obake, mononoke, kaii, oni. Depedendo de quem é seu referencial, determinadas criaturas podem ou não ser classificadas como youkai. Fantasmas seriam youkais? E os oni? Os espíritos benignos seriam youkais também, ou esse termo só deve ser utilizado para os espíritos malignos? Kami seriam youkais? Youkai só existiram no Japão, ou o termo pode ser aplicado em outros países? Bem, toda regra tem uma exceção, e toda resposta, uma contradição.

Assim, para o presente texto, vamos considerar youkais como sendo toda e qualquer manifestação do sobrenatural no cotidiano, seja ele uma divindade, lenda urbana, espírito objeto animado ou criatura.


Um detalhe bem curioso a respeito dos youkais está na grande popularidade que eles gozaram durante o Período Edo (1603-1868). Nesse período houve um grande boom na produção de materiais relacionados à essas criaturas, geralmente na forma de bestiários, livros ilustrados ou mesmo livros de contos. O que torna esse período particularmente curioso é que, tamanha era a popularidade desse tipo de material que além das histórias folclóricas recolhidas pelos artistas, houve também a criação de vários monstros. Esses youkais "artificiais", por assim dizer, surgiram como uma forma de adicionar um diferencial nos livros, dando um sabor de novidade para um mercado em grande expansão.


Betobeto-san por Shigeru Mizuki

Mas, por mais populares que os youkais tenham sido, a intensa modernização que o país sofreu durante o Período Meiji (1868-1912), fez com que essas criaturas, assim como muitas das tradições folclóricas, fossem caindo no ostracismo, passando a ser vistas como um mero produto da superstição e da crendice popular, ou, em outras palavras, produto de uma cultura "atrasada"


E é exatamente nesse sentido que a obra de Mizuki Shigeru se mostra tão importante, uma vez que será ele um dos principais responsáveis por reintroduzir esse conjunto de mitos e lendas no Japão moderno.


E agora que temos essas duas informações, podemos partir para nossa resenha propriamente dita.


Nonnonba - Resenha:


Capa de Nonnonba

Certo, mas agora você deve estar se perguntando: "Mas do que se trata Nonnonba?"


Bem, é sobre isso que vamos falar agora = )


Publicado pela primeira vez em 1977, Nonnonba é um retrato parte autobiográfico, parte fantástico, da infância do mangaká em Sakaiminato durante os anos 1930, de modo que acompanhamos as aventuras - e desventuras - do pequeno Shigeru, assim como suas relações familiares, amizades, paixões e, não menos importante, seu relacionamento com Fusa Kageyama, a nonnonba do título (um termo utilizado para designar idosas que prestam serviços religiosos, como rezas pelos doentes, na tradição budista), a grande influência na infância do autor e sua principal instrutora a respeito das histórias e tradições dos youkais.


Essa curiosidade e fascínio pelos youkais, marca do trabalho do autor, são também aqui uma parte vital da narrativa, uma vez que se entrelaçam com os fatos do dia-a-dia do jovem, representando uma visão de mundo - o mundo da infância do autor - onde o fantástico e o real não são entidades separadas, mas antes, partes da mesma vivência. Assim, da mesma forma que youkais podem surgir para causar algum tipo de problema, deles também podem advir as respostas, como no caso do youkai lançador de feijões Azuki-Hakari que termina atuando como uma espécie de mentor para o jovem Shigeru.


No entanto, Nonnonba não trata apenas de histórias de youkais.


Como mencionado, o sobrenatural é aqui apenas uma parte da realidade, convivendo lado-a-lado com questões mundanas, como as influências do belicismo japonês que, em pouco tempo, lançaria o país na rota da Segunda Guerra Mundial, retratada não apenas nos discursos escolares, mas também nas próprias guerras engendradas pelos garotos, e que, por algum tempo, tem Mizuki como participante. Também no front do cotidiano, acompanhamos os altos e baixos da família do autor, com sua mãe, descendente de uma família nobre mas que, no período, se encontrava em decadência, seu pai, um bancário que, tendo estudado na universidade de Tóquio, vive no conflito entre suas aspirações intelectuais e as necessidades do dia-a-dia de sua família, além de seus outros dois irmãos, cada um com seus próprios problemas e momentos.


Finalmente, à questão do próprio Shigeru que, sofrendo na escola, encontra seu lugar no mundo por meio das artes, ao mesmo tempo em que começa a lidar com as agruras e provações que a vida adulta nos reserva, como as dores da perda - tanto em seu primeiro contato com a Morte, por meio do falecimento de uma prima Chigusa, tanto pela separação geográfica, com a partida da jovem Miwa - e do isolamento - provocados devido à um pequeno incidente com as crianças do grupo, que termina com o jovem sendo colocado em uma posição de pária entre eles. Assim, Nonnonba é também uma história de descoberta e de amadurecimento, onde a inocência da infância começa a ter seus primeiros contatos com o que a aguarda no mundo real.


Contudo, o mangá não se trata de uma história triste, ou pesada. Contada com leveza, a narrativa de Mizuki consegue provocar tanto o riso, quanto a tristeza, assim como também nos fazer parar e refletir sobre a própria vida, numa dança que ora se apresenta como um espetáculo agridoce, ora como uma bela e inocente comédia, sendo essa a razão pela qual já considero Nonnonba uma das melhores leituras de 2024.


Mas e você, já leu Nonnonba? Se você já leu, me diz o que achou! Estou ansioso para ouvir sua opinião! Se não, vou deixar aqui o link da Amazon através do qual você pode garantir o seu exemplar - e ainda ajudar o site dando aquela força = )



 




 

E, como já é costume aqui na Galeria, deixo aqui alguns links de referência para você seguir suas leituras e pesquisas e, quem sabe, se tornar mais um aficcionado por youkais ou pelo

Mizuki Shigeru.


Boa pesquisa!


  • Sobre Mizuki Shigeru:

Mizuki Shigeru and American Horror Comics

Shigeru Mizuki ( biografia em vídeo)


  • Sobre Youkais:


Lenda da Kosodate Yuurei

Definição de Youkais

OSU Libraries about Youkais


  • Sobre Gegege no Kitarou:


Canal Qualquer Coisa - Especial sobre Gegege no Kitarou

 

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