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  • Foto do escritorLucas Freitas

Os Peixes de Gyokoo e a criação do efeito de estranheza em uma obra.

Atualizado: 16 de abr.

Uma discussão levantada por conta de uma treta aleatória na Internet sobre a qualidade da CGI e a geração do efeito Insólito em uma narrativa.


Os Peixes de Gyokoo em ação

Então, não sei até que ponto você vai estar familiarizado com essa discussão, mas, há um tempo, surgiu um debate na Internet acerca da qualidade da CGI utilizada pelo estúdio Ufotable, responsáveis pela animação de Kimetsu no Yaiba - também conhecida como Demon Slayer. Como em praticamente toda a discussão de Internet, dois lados se formaram, um a defendendo a qualidade do CGI, outro criticando.


Mas não é sobre essa discussão que quero falar hoje.


Antes, quero falar um pouco sobre o efeito de estranheza, também conhecido como o insólito.


Mas para chegar nisso, vamos começar por partes, certo? Começando por uma breve explicação sobre o que é esse efeito, e para isso, vamos precisar falar um pouco sobre o gênero fantástico.


O gênero Fantástico:


Então, antes de mais nada, tenho que dizer que não sou um acadêmico, de modo que, apesar de ter estudado - e ainda estudar - este tópico, este texto não vai ser um artigo científico. Ainda assim, vou deixar algumas referências no final do texto para quem tiver curiosidade sobre o tema. Já de saída, recomendo também o Fantasticursos, que tem vídeos muito bons sobre o tema.


Tendo feito esse aparte, vamos lá.


Quando falamos do gênero Fantástico, estamos falando de um termo guarda-chuva que reúne uma série de outros subgêneros, como o terror, horror, alta fantasia, baixa fantasia, contos de fadas e afins. O pesquisador búlgaro, Tzvetan Todorov (1939-2017), foi um dos principais estudiosos a trabalhar com o assunto, criando uma definição e sistematização para o trabalho com o mesmo.


Tzvetan Todorov

Na definição dele, dois pontos são bem característico do Fantástico. O primeiro, é o fato deste ser um gênero que surge a partir de uma quebra de expectativas. Mais especificamente, imagine que temos uma situação normal, como pegar um lápis em cima da mesa. Ao soltar o lápis, sabemos que ele irá cair em direção ao chão, certo? No gênero Fantástico, porém, não é bem isso o que ocorre, de modo que o lápis pode não só subir, como também flutuar em pleno ar.


O segundo ponto, e o mais emblemático na definição de Todorov, sendo o cerne da sua definição, inclusive, está no fato do Fantástico ser um gênero da incerteza. Ao longo de toda história haverá a dúvida se o elemento que gera essa quebra é real ou não. Essa incerteza seria o Fantástico por definição. À medida em que a narrativa avança, porém, e o evento estranho vai sendo explicado, a história poderia seguir por dois caminhos: o Estranho (quando o elemento de quebra possuí, sim, uma explicação que pertence ao reino das coisas naturais e conhecidas) e o Maravilhoso (quando há explicação, mas a mesma possuí uma explicação que foge do reino natural e conhecido).


Naturalmente, como tudo no mundo acadêmico, é preciso lembrar que isso é apenas uma visão sobre o tópico, certo? Autores e pesquisadores diferentes podem - e vão - ter visões diferentes sobre o tema, de modo que não temos uma definição definitiva. Não só isso, como estamos falando sobre arte, é preciso lembrar que nada é definitivo ou fixo. Não só isso, dificilmente vamos ter alguma obra ou assunto que possa ser tão facilmente reduzido ou enquadrado em uma categoria. Assim na arte como na vida.


Agora, vamos voltar um pouco e nos focar sobre esse elemento de quebra, sim?


Bem, esse elemento de quebra, como o próprio nome diz, deve quebrar a normalidade da narrativa. Ele pode ser um fantasma, um monstro, ou qualquer tipo de evento inexplicado. Seu único requisito é justamente de ser algo estranho àquela realidade. Esse elemento, por sua vez, será chamado de agora em diante de Insólito.


Uma vez tendo feito essa definição, vamos para a parte divertida da coisa, ou, em outras palavras...


Como gerar o insólito em uma narrativa:


Então, vamos lá.


A criação do efeito de insólito em uma narrativa pode ser alcançado de várias formas. O que é preciso se ter em mente é que sempre, sempre, o efeito precisa gerar uma quebra na ordem natural das coisas. Essa quebra podendo ser percebida ou pelos personagens do universo, ou pelo leitor.


Assim, o primeiro fator a se levar em conta está na criação de mundo. É preciso que o mundo em que o protagonista se encontre possua regras claras, e que elas sejam conhecidas tanto pelo personagem quanto pelo leitor. No caso do exemplo do começo do texto, é preciso que o escritor/narrador estabelece que, nesse mundo, o normal é que o lápis caía no chão ao ser largado. Assim, quando o lápis não cair - seja para flutuar, seja para subir - será gerada um evento insólito, quebrando-se a ordem "natural" das coisas.


As coisas vão ficando mais interessantes quando migramos para outros meios, em particular aqueles que adicionam novos elementos à narrativa.


Vamos pegar as histórias em quadrinhos, por exemplo.


Aqui, além da dimensão textual, temos também a dimensão da imagem, que vai abranger não só a arte em si, como também a estrutura e composição da página, fonte e posicionamento dos textos, como definido pelo Will Eisner (1917-2005), em seu Quadrinhos e Arte sequencial.


Assim, o insólito poderá ser criado também com a própria arte, seja apresentando um mundo estranho que, por si só, já entra em contraste com o mundo real, como apresentado neste painel de Steve Ditko em Strange Tales v1.#138 (1965):


Dr. Estranho de Steve Ditko

Ou, quebrando a estrutura padrão da página, como apresentado nesta sequência de alucinação apresentada por Jim Steranko em Captain America v1.# 111 (1968):


Capitão América de Jim Steranko

E, já que estamos falando de alterações na estrutura da página, alterar o fluxo de leitura, como trabalhado por Scott Snyder e Greg Capullo na edição , de Batman v2.#5 (2012), também é uma forma de geração de estranheza, visto que a revista irá replicar a própria perturbação do protagonista.


Batman de Greg Capullo

Finalmente, pelo menos por hoje, temos a solução adotada por Jack Kirby, de utilizar colagens de fotografias em suas páginas, como no exemplo abaixo (Fantastic Four v1.#51 - 1966) Ao utilizar uma mídia diferente - fotografia - o artista cria um grande efeito de estranheza, visto que a realidade da foto entra em choque com o meio ilustrado, deixando claro ao leitor que o mesmo está diante de um mundo/dimensão diferente:


Quarteto Fantástico de Jack Kirby

Todas essas técnicas são possibilidades que nos são trazidas pelo acréscimo de mais um elemento à narrativa.


Para uma leitura complementar sobre como as imagens trabalham na construção dos efeitos em uma narrativa, vou deixar também um artigo que escrevi junto com o Prof.Dr. Alberto Pessoa em 2021 lá nas referências, certo? Nele, realizamos uma análise de uma HQ quadro a quadro, e acho que pode ser interessante dar uma olhada nesse material para aprofundar a discussão que estamos tendo aqui ; )


Mas voltando ao ponto:


Já que começamos a falar em quadrinhos, vamos dar agora um próximo passo, e ir para o audiovisual, seara onde iremos encontrar produtos como animações e filmes e que deu início a todo esse post.


Aqui, o visual vai possuir uma lógica bem parecida com a daquela apresentada nos quadrinhos, podendo ser ele mesmo um gerador de estranhamento graças às decisões tomadas pela equipe.


Mas antes de chegarmos no ponto do post, é preciso comentar também que aqui, vamos ter também uma outra dimensão que, até então, não tínhamos nas outras mídias. O áudio. Aqui eu preciso confessar minha ignorância sobre o tema, uma vez que não sou, nem de longe, um especialista em áudio. Então, vou falar sobre o tópico bem por cima.


Da mesma forma que o áudio pode criar uma ambientação, potencializando sensações de medo, angústia, alegria, por exemplo, e criando, com isso, o efeito de insólito. Um bom exemplo disso, já que começamos este texto com base em Kimetsu no Yaiba, está no filme Mugen Train (2020), na batalha entre Rengoku e Akaza.


Rengoku vs. Akaza

Nessa batalha, os temas dos dois personagens vão se alternando, de acordo com o modo como cada um está saindo, o que por si só já gera uma dinâmica de movimento e tensão para a cena. Mas mais do que isso, é interessante perceber a diferença que há entre as duas músicas. A música de Akaza, o demônio, é fria, rica em distorções e efeitos, sendo basicamente uma música techno, com uma batida mais agressiva, quase marcial. Já a música de Rengoku, é mais humana, quente, com mais instrumentos de cordas e menos distorções.


Um processo bem parecido com esse pode ser visto no projeto EPIC: The Cyclops Saga (2023), onde as vozes do ciclopes, e suas músicas, sempre utilizam sintetizadores nas vozes dos monstros e outros efeitos para a construção de suas músicas, efeitos esses que não se encontrarão nas músicas cantadas pelos humanos.


Essa modo de criar distinção pelo áudio pode ser visto também em Candyman (1992). Aqui, a voz de Candyman (Tony Todd) possuí um tom profundo, grave e retumbante, que faz com que o personagem não só ganhe um peso diferente, o destacando dos demais e lhe garantindo uma aura sobrenatural, reforçando, assim, estranheza de sua presença naquele meio, até então, normal.


Mas vamos voltar para o conjunto, sim?


Devido a todos os elementos que compõem essa mídia - como câmeras, lentes, iluminação, colorização, edição - as possibilidades de criação aqui são bem altas, e valeriam um post por si só apenas para essa discussão.


Dois casos bem interessantes que me veem em mente quando penso nisso se encontram nos filmes The Masque of the Red Death (1964), de Roger Corman, onde a sequência do sonho é apresentada em uma tela ondulada, no estilo de flashback, e sob uma luz mortiça e esverdeada, o que garante a sequência um efeito de estranheza bem interessante:


The Masque of the Red Death

O segundo caso, é o da franquia Evil Dead, onde a entidade que persegue os personagens nunca é apresentada. Ao invés disso, sua presença é sugerida pela câmera que, assumindo seu ponto de vista, vai atrás dos personagens em uma velocidade acelerada, acompanhada por um som estranho.


Como parte do audiovisual, a animação também estará relacionada ao audiovisual, estão sujeita aos mesmos processos e puxando elementos presentes também nos quadrinhos, visto que ela também tem um pezinho no campo da ilustração.


No caso da terceira temporada de Kimetsu no Yaiba - ou quarta, se considerarmos que o filme é a segunda - durante o ataque à vila dos ferreiros, Gyokoo, um dos vilões do arco, lança um ataque de peixes demônios, como apresentados na imagem de abertura do texto.


Essa aqui:


Os Peixes de Gyokoo de novo

No caso, os peixes são um bom exemplo de como o insólito pode ser criado no audiovisual através da mistura de técnicas.


Seguindo a mesma lógica que apresentamos ao falar dos quadrinhos, o uso da CGI para a criação dessas criaturas, já as estabelece como algo estranho àquele mundo, visto que a técnica da computação gráfica é uma técnica completamente diferente do restante da animação.


Esse padrão, por sua vez, é algo que se repete em toda série. Nela, muitas das criações dos onis , sejam elas criaturas, como os peixes mencionados acima, ou mesmo a fortaleza do vilão principal, são construídas com fortes doses de computação gráfica, o que faz com que as mesmas destoem do que seria algo "natural" para ele aquele mundo. Isso, por si só já levantaria uma outra discussão interessante, uma vez que os próprios onis são representados por meio de animação, o que indica que, por mais estranho que ele possa ser, ele é algo que faz parte daquele mundo, ao passo que suas criações, não.


Mas já estou divagando bastante.


Um outro fator interessante dos peixes como elemento insólito está em sua constituição. Apesar de terem um corpo de carpas, eles possuem braços e pernas claramente humanóides. Essa junção de dois elementos de categorias diferentes - humano e animal - em uma única criatura gera uma sensação de estranheza nos personagens - e no espectador - visto que. o mesmo reconhece os representantes de cada elemento - peixe e humano - e tem plena consciência de que os dois elementos não se misturam no mundo real.


Essa é uma técnica bem interessante, e comum, na criação de monstros, sendo bem fácil de encontrá-la em vários tipos de narrativa. Quer um exemplo? As criaturas de H.P.Lovecraft, como o próprio Cthulhu, que é representado como uma criatura de aspecto humanóide, mas com cabeça de polvo e asas. Ou então, ainda em Lovecraft, os Mi-go, uma raça alienígena que é um misto de crustáceos e fungos. Essa mistura de elementos diferentes em um único corpo, dá força ao monstro justamente por apresentar de forma mais visível seu caráter de estranho ao meio em que se encontra, visto que, para o universo em que ele é inserido, essa mistura não deveria existir.


Cthulhu

Por fim - pelo menos por hoje - está a movimentação dos peixes demônios. Travada e estranha, a movimentação dessas criaturas as faz destoar dos movimentos fluídos dos demais personagens, sendo este um outro sinal que denota sua estranheza àquela contexto. Essa questão da movimentação é bem interessante, e algo que conseguimos graças ao audiovisual, sendo utilizada também em outros locais, sempre para reforçar o senso de estranheza provocado pelo monstro.


Ok, acho que já posso ter me estendido demais nessa conversa. Sempre tive problemas para ser sucinto, e isso piora ainda mais quando estou falando sobre um tema que gosto. De qualquer forma, espero ter conseguido trazer algo de interessante para você que está lendo essa série de devaneios semi-aleatórios, ou pelo menos ter feito você pensar de um jeito diferente.


Mas o que você tem a dizer sobre esse assunto? Você sentiu falta de algo em particular? Acredita que falei alguma besteira, ou errei em alguma definição? Fique a vontade para continuar essa conversa nos comentários ; )


Ah, quanto a discussão sobre a qualidade do CGI. Bem, isso importa? Opiniões são coisas pessoais, de modo que cada um terá a sua - ou assim se espera. O que realmente importa é o diálogo entre visões diferentes e as ideias que podemos extrair dessa conversa.


Então fica também essa dica para a vida ; )


Referências:


Alberto Pessoa e Lucas Freitas - As marcas do insólito em O Ogro, de Julio Shimamoto - http://marcadefantasia.com/revistas/imaginario/imaginario21-30/imaginario23/imaginario23.html



Tzvetan Todorov - Introdução à literatura fantástica - Editora Perspectiva


Will Eisner - Quadrinhos e Arte sequencial - WMF Martins Fontes



 

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