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  • Foto do escritorLucas Freitas

Notas sobre histórias de mundo cão e recompensas narrativas

Atualizado: 16 de abr.

Um breve texto onde discutimos o problema com o senso de recompensa e completude em narrativas do tipo de mundo cão, onde o filho chora e a mãe não vê.



Dying Earth um dos gêneros de histórias do mundo cão


Bem, já faz um tempo que não falo sobre narrativa propriamente dita por aqui, então, vou mudar isso hoje, dessa vez, trazendo uma pequena reflexão sobre aquilo que acredito ser o principal problema com o que, graças ao Amer, do Blog do Amer, costumo chamar de histórias de mundo cão. De fato, boa parte das definições e da argumentação por trás desse tema eu devo à ele. Então, caso ele venha a ler esse texto, fica aqui meu muito obrigado por suas palavras de sabedoria, Amer!


Mas então, a ideia da discussão de hoje me veio enquanto lia o Volume 3 da Saga do Demolidor, publicação da Panini Comics, que está republicando uma série de histórias do Homem sem medo, começando pelo período da Ann Nocenti à frente do personagem.


Demolidor e Mary Tifóide por John Romita Jr.

Apesar de gostar bastante das histórias da Nocenti - e isso será tema de um post no futuro - existe algo nas narrativas dela que sempre me deixou desconfortável, e é sobre isso que vou falar nesse post.


Mas primeiro, vamos introduzir um conceito bem importante para esse texto: mundo cão.


Bem, a expressão mundo cão tem como origem o título de um filme italiano, Mondo Cane, de 1962. Esse filme, criador do gênero shockumentary, um documentário que tem como intuito causar choque, ficou conhecido por trazer um recorte de várias ações e comportamentos de várias partes do mundo, e recolhidos com o intuito de chocar a sensibilidade dos frequentadores de cinema dos idos anos 1960.


Independente do filme, a expressão pegou, virando sinônimo para tudo aquilo que represente o que há de pior na natureza do ser humano, ou, como define o dicionário Aulete:

1.Caráter de obra ou atitude que revele as práticas e atividades mais vis e grosseiras do ser humano, isto é, que denuncie sem retoques (e sem mentiras) aspectos de seu cotidiano atual.

Certo, uma vez que definimos o que é o mundo cão, podemos prosseguir.


Quando falo em histórias de mundo cão, penso naquelas histórias que perpassam tanto terrenos próprios ao fantástico, como Dark Fantasy, Ficção Apocalíptica, Ficção Pós-apocalítpica, Dying Earth, e também narrativas ambientadas no "mundo real". Em comum, esse tipo de histórias coloca seus protagonistas em ambientes hostis, onde a própria sobrevivência é algo incerto, com pouca - ou nenhuma - perspectiva de uma melhora. Não só isso, essas histórias são muitas vezes acompanhadas por um mundo onde conceitos base da nossa sociedade, como ética, segurança e justiça, por exemplo, perderam completamente seu significado, o que, por sua vez, deixa a porta aberta para aquilo que há de pior na humanidade.


É justamente por conta disso, que esse será o cenário ideal para a geração de um tipo particular de personagem: o anti-herói. Afinal, se a própria noção de justiça e moral se encontra corrompida, o herói tradicional perde seu sentido de ser. Nesse vácuo, o herói acaba sendo substituído por alguém que não vê problemas em jogar o mesmo jogo do "mal", mas que, no final do dia, agirá com o intuito de realizar algo bom.


Dentro do que pode ser considerado bom nesse tipo de história.



Cena de Mad Max


Os exemplos desse tipo de narrativas são vários: no cinema, temos Mad Max e O livro de Eli; nas Hqs, o oeste selvagem de Jonah Hex ou o mundo brutal do Justiceiro; nos mangás, Hokuto no Ken e Berserk; nos videogames, Dark Souls e Bloodborne.


Enfim, a lista prossegue.


E agora, chegamos no ponto onde podemos falar sobre o problema com esse tipo de história.


Antes de mais nada, as histórias de mundo cão não são boas nem ruins por si mesmas. Como toda narrativa, sua qualidade, assim como seus defeitos, se encontrarão no modo como a mesma será executada. No entanto, existe, sim, um ponto que é preciso levar em conta ao se trabalhar com esse tipo de história.


Ao trabalhar com esse tipo de histórias, é preciso lembrar que, uma vez que lidam com cenários pautados pela miséria e pelo niilismo, é vital que o escritor/diretor ofereça uma recompensa significativa para seu leitor/espectador/jogador, por menor que ela seja. O antagonista principal foi morto? A vila em perigo foi salva? O protagonista conseguiu salvar a única flor que existia naquela terra? Enfim, não importa o que seja, é preciso que haja um claro senso de recompensa, de que os esforços ali depreendidos valeram a pena, e que uma vitória foi alcançada.


Ok, você pode até argumentar que isso é um elemento importante em qualquer tipo de história, afinal, o público estará investindo seu bem mais preciso e escasso, o tempo, ao se engajar com uma narrativa. Por isso, o mínimo que podemos fazer por ele é oferecer algum senso de recompensa ao final da trajetória. E, sendo sincero, você estaria certo.


O que acontece, porém, é que, como destaquei no negrito acima, essa recompensa se faz vital para uma história de mundo cão, em particular se a mesma for seriada. Isso ocorre porque estamos lidando com um cenário de extrema brutalidade, onde, a cada instante, somos lembrados do quão ruim estão as coisas e do quanto toda a situação ainda tem para piorar, de modo que, se seguirmos as regras desse estilo ao pé da letra, teremos uma situação onde toda e qualquer vitória que possa ser alcançada pelos protagonistas será, sempre, uma vitória relativa, incapaz de alterar ou melhorar o mundo em questão, sendo um pequeno sucesso em um oceano de fracasso e destruição.


Ainda que isso possa funcionar em uma ou até mesmo em mais histórias mas, à medida em que vamos prosseguindo com essa premissa, vamos estar correndo o risco de exaurir nosso público. E bem rápido.


Dark Souls III - Arte da capa

Isso acontece porque, quando acompanhamos uma história, precisamos experimentar um senso de conclusão, que nos faça sentir que nosso tempo e esforço valeu a pena. Para entender isso um pouco melhor, vamos pensar na estrutura tradicional da narrativa - começo, meio e fim - certo? À medida em que vai se desenvolvendo, uma história vai ganhando energia potencial - pense em uma mola esticada (começo), que vai sendo comprimida (meio) até finalmente ser solta e se esticar novamente com um grande impulso (fim). Esse impulso final, esse grande movimento de libertação, geralmente corresponde à conclusão da história, ao momento em que todas as pontas são fechadas, as respostas são dadas e o clímax encontra sua resolução.


Toda história que tome por base essa estrutura tradicional de narrativa, vai trabalhar com esse princípio de criação e liberação de tensão. Sempre, por mais que ela segure o momento de liberação de tensão, esse momento terá que vir.


E quando não vem, bem, temos problemas. Afinal, manter o público em um estado de tensão funciona, mas a manutenção desse estado exige uma grande demanda emocional. E quando não liberamos a tensão, mantemos o público cada vez mais tenso, demandando mais e mais energia por parte dele até que, em determinado ponto, se a liberação da tensão não ocorrer, corremos o risco de cansá-lo. E, se essa liberação for protelada por muito tempo, podemos chegar ao ponto de perder o nosso leitor/espectador.


No outro extremo, se não conseguimos oferecer ao público a sensação de que aquela história valeu a pena, lhe garantindo algum senso de conclusão, então, vamos terminar gerando não só insatisfação, mas frustração, o que vai deixar o leitor/espectador com uma memória um tanto quanto infeliz de sua experiência conosco.


E, em ambos os pontos, falhamos como contadores de história.


Berserk - Arte Interna

No entanto, existe ainda mais uma possibilidade de ação, que é de se minar intencionalmente o senso de conclusão. Nesse cenário, oferecemos ao leitor sua conclusão mas, logo em seguida, apresentamos uma nova informação que irá cortar o efeito obtido, jogando nosso público na estaca zero. No entanto, particularmente, tenho algumas ressalvas com essa saída.


Como mencionei acima, isso possa funcionar em uma ou até mesmo em mais histórias, mas, como toda fórmula, quando repetida demais, ela acaba perdendo sua eficácia, dessensibilizando o público ao ponto da indiferença. Isso supondo que seu leitor/espectador tenha permanecido após a primeira quebra de expectativa.


Como exemplo disso, vamos pegar as histórias do Demolidor da Ann Nocenti.


Demolidor em ação - arte de John Romita Jr.

Em dado momento, nosso herói enfrenta e derrota um vilão responsável por um assassinato e o entrega para a polícia. Aqui, temos o exemplo mais claro de uma vitória que podemos chegar, certo? No entanto, quando chegamos ao final da história, descobrimos que o vilão foi solto, de modo que a vitória do herói foi anulada em vista desse acontecimento, de modo que todo o esforço desprendido pelo herói, e acompanhado pelo leitor, foi em vão.


Ainda que essa seja a intenção da autora, sendo um dos temas por ela abordados ao longo de seu arco ( um sintoma do mal individual versus um mal generalizado ), e apesar disso funcionar bem na execução de Nocenti, esse tipo de final, além de cortar o efeito da vitória, negando, assim, a recompensa esperada pelo gênero da narrativa, irá gerar tanto frustração quanto uma sensação de incompletude na história, afinal, na perspectiva do super-herói, e do leitor, a justiça não foi alcançada.


Como dito, isso faz parte da proposta de narrativa da autora, sendo essa inclusive uma das marcas de sua passagem pelo título do Homem Sem Medo, mergulhando o personagem cada vez mais nas minúcias e complexidades do mundo real - e contemporâneo à roteirista. Ao fazer isso, no entanto, ela insere o personagem no tipo de histórias do mundo cão que venho discutindo desde o começo desse texto, submetendo o protagonista e suas histórias aos mesmos riscos que mencionei acima e que, para mim, torna o processo de leitura dessa fase do personagem bem cansativa.


Mas enfim, essa é só minha opinião.


Para quem quiser se aprofundar mais na passagem da Ann Nocenti pelo Demolidor, eu recomendo este vídeo-ensaio do Mat Draper, onde ele discute os temas e estilo da roteirista:


E por hoje é só!


P.S: Na próxima vez que formos falar sobre texto, farei algo especial sobre One Piece, e fica a promessa ; )



 

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