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  • Foto do escritorLucas Freitas

Frieren e a narrativa dos detalhes

Atualizado: 19 de abr.

Um breve texto onde discutimos um pouco sobre a importância da narrativa que se faz através dos detalhes.



Frieren e o grupo de heróis
Frieren e a Jornada para o Além - Divulgação

Sim, mais um texto sobre narrativa. E mais rápido até do que eu estava esperando.


Sim, estou tão surpreso quanto você ao ver essa frequência.


Enfim.


Recentemente, por recomendação de uma amiga, comecei a assistir o anime Frieren e a Jornada para o Além ( 葬送のフリーレン) , o que, por sua vez, me levou até o mangá de Yamada Kanehito e Abe Tsukasa, em publicação desde abril de 2020 na Weekly Shounen Sunday, da editora Shogakukan.


Para aqueles de vocês que ainda não conhecem o anime ou o mangá, vou deixar aqui um breve resumo da história, conforme apresentado na sinopse do Crunchyroll:


Após uma missão de 10 anos ao lado do herói Himmel e seu grupo, a poderosa maga Frieren derrotou o Rei Demônio e trouxe paz ao reino. Como uma elfa, Frieren tem uma vida de mais de mil anos pela frente. Ela promete retornar para seus amigos e, assim, parte em uma jornada solitária. 50 anos se passam quando Frieren finalmente volta para visitar Himmel e os outros. Embora ela não tenha envelhecido nada, seus amigos têm pouco tempo de vida restante. É então que Frieren testemunha a morte de Himmel, o que a leva a lamentar não ter passado mais tempo junto dele. Com esse arrependimento em seu coração, ela embarca em uma nova jornada com o objetivo de se conectar e conhecer melhor as pessoas. Ao longo dessa viagem, a elfa Frieren encontrará diversas pessoas e viverá incontáveis aventuras emocionantes!

Apesar desse ótimo resumo, acredito que o mesmo não consegue fazer justiça á beleza desta série. Seja trabalhando temas como legado, a passagem do tempo - e principalmente a percepção do tempo, Frieren é uma das histórias mais ricas e fascinantes que vi em um bom tempo, e certamente será um daqueles tópicos que voltarão aqui com uma certa frequência.


No post de hoje, porém, gostaria de abordar um tema em particular que me chamou bastante atenção, que é o modo como Frieren utiliza os detalhes para enriquecer sua narrativa e reforçar seus temas.


Então, sem mais delongas, vamos para nosso texto = ) A Importância que existe nos detalhes:


Antes de começarmos, acredito que seria importante definir em que pé estamos tratando essa questão dos detalhes. Durante as pesquisas para escrever este artigo, encontrei uma das melhores definições sobre o tema neste artigo da ThoughtCo. , e que você pode conferir em abaixo (tradução minha, certo?):


Na escrita, um detalhe é um item ou informação particular ( que pode ser descritiva, ilustrativa ou mesmo estatística) que serve de base para uma ideia ou contribuí para o efeito geral de um ensaio, relatório ou qualquer outro tipo de texto.

Sei que, em um primeiro momento, o fato de estarmos parando para definir o que são detalhes possa parecer algo um tanto quanto exagerado. Afinal, todos nós sabemos o que são detalhes, certo? Bem, sim e não. Ainda que possamos saber o que são detalhes, muitas vezes terminamos esquecendo que os mesmos podem carregar um grande peso para uma história. E isso porque, como o próprio nome já diz, eles são detalhes.

Excetuando-se as narrativas de mistério, onde os detalhes são de extrema importância - e claramente visíveis - para que o crime possa ser resolvido pelo detetive - e o leitor/espectador - a natureza do detalhe é que o mesmo fique em segundo plano, sendo captado por nós, mas nunca totalmente percebido, uma vez que, se damos uma grande ênfase ao mesmo, ele deixaria de ser um detalhe.


Acredito que um exemplo vai nos ajudar a entender isso um pouco melhor.


Na época de minha graduação, tive uma disciplina a respeito de concepção visual e sonora, de onde realizamos um estudo sobre a questão do character design, vulgo design de personagens, analisando a construção do personagem com base em formas e cores, por exemplo.


Esses dois elementos, que serão considerados por Marika Nieminen como duas grandes forças de comunicação não-verbal, vão exercer um grande impacto na percepção do espectador/leitor.


Já se perguntou porque um personagem fofo, ou de um desenho infantil, é tão redondo? Ou porque, quando vemos um personagem muito "certinho" ele tem uma aparência mais "quadrada"? Bem, isso se deve ao fato de que formas possuem uma linguagem própria. Assim, no exemplo que utilizamos acima, formas arredondadas são percebidas como formas mais amigáveis e não ameaçadoras, enquanto que quadrados, por sua vez, são vistos como elementos sólidos e estáveis, evocando uma sensação de segurança e confiança.


Character Sheet Pateta
Character Sheet - Pateta

Essa mesma lógica pode se aplicada também a cenários, através de uma analogia próxima, onde as linhas curvas serão associadas a ambientes mais calmos e amistosos, ao passo que linhas retas e angulosas representarão o seu oposto, como é trabalhado pelo Mateu-Mestre no seu livro Framed Ink.


As cores, por sua vez, também terão um funcionamento próprio, trazendo consigo uma série de ideias e sentidos de acordo com sua aplicação, como bem trabalho por Eva Heller em seu Psicologia das Cores. E para um exemplo bem didático sobre essa função, eu recomendo bastante este episódio, ou melhor, Desepisódio do Despautada, onde a incrível Fernanda Eggers discorre sobre as ideias, símbolos e mensagens por trás da cor azul:



Obviamente, cores e formas são elementos mais visuais, mas os detalhes também podem se encontrar em nomes, como você pode se lembrar bem das suas aulas de literatura na escola, onde os professores discorriam sobre a escolha de determinados nomes por partes dos autores - como em Iracema, ou mesmo o Bentinho Santiago.


Mas, enfim, acredito que já consegui apresentar meu ponto de que detalhes podem ser mais importantes do que imaginamos, trazendo uma série de implicações e interpretações que podem enriquecer uma obra.


Agora, que tal vermos como Frieren utiliza dos detalhes para trabalhar os temas de sua história?


Frieren e os detalhes em sua Jornada para o Além:


Pois bem, antes de começarmos a falar da função dos detalhes por aqui, existem duas coisas que precisamos levar em conta quando falamos sobre Frieren:


  1. Como uma elfa, Frieren é imortal;

  2. Frieren não tem uma real noção da extensão de seus sentimentos;


Esses dois pontos acima serão fundamentais para entender o modo como os detalhes são utilizados na construção da narrativa da série.


Frieren e o novo grupo de heróis
Frieren e a Jornada para o Além divulgação

Sendo imortal, a noção de tempo de Frieren é completamente diferente da dos demais personagens da série. Isso, por sua vez, vai nos trazer uma situação interessante do ponto de vista da narrativa. Pois, se o protagonista é o eixo condutor através do qual acompanhamos uma história, e "vemos" o mundo, como seria a perspectiva de uma criatura imortal para quem semanas e meses não são praticamente nada? Melhor ainda, como seria possível representar essa perspectiva para o seu público?


Bem, é aqui que vão entrar os detalhes.


Fora a primeira grande transição temporal de 50 anos que marca o final da jornada do grupo de aventureiros do qual Frieren faz parte até a morte do herói Himmel, as transições de tempo serão quase sempre apresentadas de formas graduais e sutis.


Sempre anunciadas pela chamada " X anos após a morte do grande herói Himmel", as mudanças e transições de tempo podem ser vistas através do envelhecimento gradual do elenco de apoio, composto, em sua maioria, por humanos. Fora os casos dos personagens como Himmel e Heiter, que tem um envelhecimento mais pronunciado devido a grande passagem de tempo, Fern é um exemplo bem nítido disso. Começando a história como uma criança de 9 anos, conseguimos acompanhar o crescimento dela de modo mais nítido à medida em que os capítulos vão avançando, até chegar no ponto atual da história, onde ela deve estar entre seus 18-20 anos.


O envelhecimento de Fern, pode ser visto não só no seu amadurecimento - apesar de, diga-se de passagem, ela sempre ter sido uma criança velha, do ponto de vista mental - mas também de seu próprio crescimento, podendo ser acompanhado quase centímetro a centímetro em suas aparições, a medida em que ela começa não só alcançar, mas também ultrapassar, a altura da própria Frieren.


Um outro caso bastante interessante de como esse envelhecimento pode ser percebido é através do próprio Eisen. Membro da mesma equipe de heróis de Frieren, ele compartilha com a elfa uma certa longevidade maior do que a dos humanos, aparentando, inclusive, não ter sido tão afetado assim pela passagem do tempo. No entanto, diferentemente da maga, ele não é totalmente imune às mudanças temporias, como podemos ver no próprio Capítulo 7, nessa bela transição entre as páginas 5 e 6 do mangá:


Eisen jovem - Quadro do mangá Frieren
Eisen - Quadro final da página 5


Eisen velho - Quadro do mangá Frieren
Eisen - Quadro inicial da página 6

Essa perda de massa muscular, bem característica da idade, é apresentada com clareza nessa sequência, sendo reforçada pelo detalhe do enquadramento. Pois, enquanto o anão toma quase todo o espaço do quadro final da página 5, no começo da página 6 ele é representado no meio do quadro, "menor" do que sua representação no passado - um exemplo bônus da importância dos detalhes na hora de construir uma narrativa em quadrinhos, em particular na hora de trabalhar a composição ; )


No entanto, a idade de Eisen já é entregue muito antes, ainda no Capítulo 1, pelo simples detalhe das rugas e marcas de expressão presentes em seu rosto:


Eisen e suas marcas faciais - detalhe de quadro do Capítulo 1 de Frieren
Eisen - Capítulo 1

Essa escolha por uma apresentação mais sutil do envelhecimento, serve como uma forma de aproximar o leitor/espectador da própria percepção de tempo de Frieren.


Mas é claro, a passagem do tempo e seus efeitos é apenas uma das formas como os detalhes agem em Frieren e a Jornada para o Além. A segunda, e que talvez seja a mais interessante, se encontra na jornada emocional da maga elfa.


Pois, como dito acima, Frieren não possuí uma compreensão plena de seus sentimentos, mesmo aqueles que são óbvios para todos ao seu redor - da mesma forma que não entende deixas e outras "normas sociais", um dos motivos pelos quais a personagem é vista em muitas discussões como autistic-coded.


De fato, a série tem seu início justamente após a morte de Himmel, com a maga começando a compreender que sentia algo a mais pelo herói. Esse algo, que logo irá se mostrar como sendo amor, será apresentado de modo relativamente sutil a princípio, e de formas que passam despercebidas inclusive para a própria Frieren. Seja em sua dedicação por encontrar as flores certas para ornar uma estátua, seja na forma como ela sorri ao explicar para Fern o porquê de se concentrar em achar "magias inúteis", serão esses detalhes que vão revelando a verdadeira gama de sentimentos da personagem para o público, antes mesmo que ela própria consiga tomar consciência disso - e tarde demais, diga-se de passagem.


Do outro lado, temos o próprio Himmel - presente em flashbacks - que, nunca revelando seus verdadeiros sentimentos pela maga, vai demonstrando-os através de ações, gestos e palavras, em um romance que se desenvolve e cresce nos detalhes mais do que na própria ação.


Assim, é nessa dança de detalhes, e sempre, sempre nos detalhes ( nos gestos que falam mais do que palavras, nas ações e palavras que comunicam mais sugerindo do que falando) que Frieren ganha muito de sua força dramática, apresentando uma doce, porém amarga, valsa de um amor nunca declarado, mas sempre presente, dolorosamente claro para tods que podem ver, menos os próprios envolvidos, e embalada pelos acordes dos arrependimentos das coisas nunca ditas.


Uma valsa que, contada de forma mais ostensiva e direta, certamente não teria metade da força que tem.


E é assim que Frieren e a Jornada para o Além utiliza os detalhes para reforçar os temas de sua história, tirando o máximo de proveito de uma construção sutil, porém implacável, assim como o é o próprio tempo.


Bem, espero ter conseguido apresentar o meu ponto aqui. Frieren é, de longe, um dos melhores animes que já vi e um dos melhores mangás também, de modo que, no futuro, pretendo retornar com mais textos sobre - quiçá uma resenha da primeira temporada. mas isso, ficará para o futuro.


Por hoje, porém, ficamos por aqui.


E até a próxima!


 

Se você gostou deste texto, acredito que você também vai gostar deste outros que também discutem narrativa e produções japonesas:


A narrativa cíclica e os muitos ciclos em One Piece

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Como de costume, vou deixar aqui algumas das referências que utilizei para escrever este artigo:

Referências:


Framed Ink: Drawing and Composition for visual storytellers (2010)- Marcos Mateu-Mestre

A psicologia das cores: Como as cores afetam a emoção e a razão (2021)- Eva Heller

Psychology in character design: Creation of a character design tool. - Marika Nieminen 2017


 

Links da Amazon:


Então, se você se interessou em ler Frieren, ou saber mais sobre o uso de cores, você pode seguir os links abaixo. Lembrando que, ao comprar por estes links, você estará me ajudando a produzir mais conteúdos como este que você acabou de ler = )


Framed Ink: Drawing and Composition for visual storytellers (2010)

Frieren e a Jornada para o Além - vol. 1:

A psicologia das cores: Como as cores afetam a emoção e a razão (2021)



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