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  • Foto do escritorLucas Freitas

Conto da Rua - Ficção Relâmpago

Hoje vamos fazer diferente, e apresentar aqui um dos meus textos, publicado em 2019, na newsletter Faísca, da revista Mafagafo

rua de paralelepípedos

A essa altura do campeonato, já deve ter ficado um pouco claro que eu escrevo. Sim, sei que é um choque, mas é verdade.


Ao longo desses anos, já escrevi vários tipos de textos e, dentre eles, talvez o mais difícil tenha sido trabalhar com ficção relâmpago. Esse tipo de texto é marcado por um texto bem curto. Ainda que a definição bastante gosto bastante da definição apresentada pela Jana Bianchi, escritora e editora da revista Mafagafo e da newsletter Faísca, que classifica a ficção relâmpago como um tipo de narrativa que possuí menos de 1000 ou 1500 palavras - sendo textos menores que isso geralmente classificados como microcontos.


E é exatamente aí que se encontra a dificuldade. Por serem narrativas muito curtas, esse tipo de história requer um nível de concisão absurdo, uma vez que o espaço necessário para desenvolver a história é bem reduzido. Sendo naturalmente prolixo, sempre sofri bastante com qualquer tipo de texto curto, e na ficção relâmpago em particular.


Ainda assim, dentre algumas experiências aqui e ali, consegui escrever algumas coisas, dentre elas, o Conto da Rua, uma ficção relâmpago que foi publicada na newsletter Faísca em 2019, e que você pode conferir abaixo:


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Conto da Rua:


Tenho sede. E fome. Quanto tempo faz desde a última vez em que me alimentei? Anos? Décadas? Meses? Não sei. Não consigo me lembrar.


Não tenho como me alimentar sozinha, não sou uma caçadora, nem nada do tipo, então, preciso que outros tragam a comida até mim. Todos os dias, eu a ouço caminhando. Pés insensíveis e lépidos que guiam as cabeças do meu gado. Pela manhã, são muitos, milhares, talvez. Pela tarde, menos, talvez só algumas centenas. À noite, não passam de um punhado.


É geralmente à noite que eu consigo me alimentar.


Agora, eu ouço passos. Pisadas apressadas, que ecoam pelo vento quente da noite. Está muito abafado. Vai chover em breve. Talvez seja por isso que ele corre. Não sei. Não posso dizer ao certo, já que não consigo ver. Não me foram dados olhos para ver.


Não, ele corre, mas é por conta de outro medo. Mas medo do quê? Teria algo em mim o assustado? Teria ele me visto, reparado em minha face ávida e sôfrega? Não. Impossível. O gado nunca me vê, apesar de passar por mim todos os dias.


Em pouco tempo, outros passos se juntam ao primeiro, e tenho minha resposta. Outros? Não, não. Só um. Um outro que se aproxima, mais furtivo que o primeiro. Ele se apressa. Os passos do primeiro aceleram também. Ele tenta correr, mas é inútil. O outro já o alcançou.

Ouço sons desconexos, uma voz aguda que se eleva, uma outra, áspera, que a repreende.


Há uma confusão ali entre esses dois seres. Não entendo o que falam, sua língua me é estranha, não é aquela com a qual me acostumei ou fui criada. Sei, porém, que eles brigam.

Há medo entre eles. Violência, quem sabe. Um silvo agudo corta o ar, algo liso penetre a carne. Eu sinto o cheiro ferroso de sangue – sangue morno e fresco – e minha boca ressecada começa a salivar.


Entre gritos e gorgolejos, ouço o som de algo sendo arrancado e de passos que se afastam. Em poucos segundos, sinto um baque surdo contra o meu rosto, e sei que o primeiro caiu.

Seu sangue banha as minhas faces, umedece meus lábios secos e rachados, refresca minha língua murcha. Durante toda a noite, sinto o precioso líquido pulsar por seu corpo e refrescar meu rosto e minha pele até que seja lavado pela forte chuva que chega sem aviso.


Então já não tenho mais sede, apesar da fome ainda persistir.


Demora um pouco até que eu ouça passos novamente. Quando vem, trazem murmúrios, gritos e mais confusão. Um grito metálico e histérico rasga a noite e, apesar de não ser capaz de ver, sei que vão tirar de mim o meu alimento. Mas não me importo. Consegui saciar a minha sede e, por ora, isso já me basta.


Como previsto, o alimento é levado, enquanto pés pesados caminham numa dança bem orquestrada até os pesados círculos de borracha que pressionam o meu corpo e que fazem cócegas toda vez que passam.


Eles continuam falando, mas ainda não os entendo.


Mas também não gostaria de entender.


Tudo o que eu queria era poder ter feito o meu banquete, mas me contento com a sede plenamente saciada.


Antes que a multidão se vá, um outro chega. Ele pisa devagar, com calma. Parece não se abalar com nada daquilo. Pelo peso em seu corpo, vejo que ele se ergue, firme e ereto, e fala num tom claro e preciso de um comunicador. Ele tem uma mensagem, e a passa para um público que não consigo ver. Sua voz é fria, tão fria quanto a chuva que caiu há pouco, e nela ouço uma palavra familiar - “Rua” - que ele parece repetir de novo e de novo e de novo.


“Rua” e alguma coisa mais.


Não sei o que isso significa mas, sem saber porque, sei que ele fala de mim.


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Para quem ficou curioso para conhecer mais sobre esse tipo de texto, recomendo bastante a revista Mafagafo, que você pode acessar o site oficial da mesma em: https://mafagaforevista.com.br/


E para conhecer mais sobre o trabalho da incrível Jana Bianchi, você pode encontrá-la tanto no site dela: https://janabianchi.com.br/


Ou no próprio perfil dela no Instagram: @janapbianchi

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