Um pequeno texto sobre a narrativa cíclica e sobre como a estrutura de ciclos é utilizada em One Piece
Bem, hoje finalmente vou conseguir apresentar o texto que estava engalhado comigo há mais de 2 anos - e que, indiretamente, foi um dos responsáveis por me fazer criar este site. Se isso já te deixou interessado, espera só até eu dizer que o texto de hoje reúne não só narrativas cíclicas, como também One Piece.
Aposto que consegui chamar sua atenção com isso ; )
Então, vamos lá!
Uma narrativa cíclica é, como o próprio nome diz, uma narrativa que atua em um ciclo. A história se inicia em um ponto, progride, se desenvolve e se encerra, geralmente voltando para o ponto do início.
No entanto, ainda que a história volte para onde começou, isso não necessariamente implica na ausência de uma mudança por parte dos personagens ou cenários envolvidos. De fato, quase toda história, parte do princípio de uma transformação, onde um personagem/cenário saí de um lugar A para um lugar B. O ponto, aqui, está no que acontece com o personagem, pois, ainda que ele volte para o ponto de início, ele não é o mesmo personagem do começo da história, trazendo consigo algum aprendizado, ou tendo passado por alguma mudança, de modo que a volta ao lugar de início reforça o contraste do personagem antes e depois do seu aprendizado.
Quer um exemplo?
Bem, vamos pegar a Epopeia de Gilgámesh, uma das narrativas mais antigas de que dispomos. Nesse poema sumério, acompanhamos a história do rei Gilgámesh em uma jornada pela imortalidade. No entanto, antes de começar a história propriamente dita, a narrativa apresenta um louvor à cidade de Uruk, apresentando a cidade e as muralhas erguidas por seu rei, antes de apresentar a situação lastimável em que esse mesmo monarca deixou seu povo, o que fará com que eles peçam ajuda aos deuses, ajuda essa respondida com a aparição de Enkidu, que se tornará amigo e companheiro de aventuras do rei.
Em uma dessas aventuras, porém, a dupla enfurece os deuses e, como consequência Enkidu é vitimado pela doença, vindo a falecer. A morte do amigo jogará Gilgámesh em um momento de desespero e medo, o que fará com que ele perceba que também sua própria mortalidade. Essa percepção, por sua vez, lançará o rei em busca de uma forma de alcançar a imortalidade.
No entanto, apesar de seus esforços, Gilgámesh consegue apenas descobrir que a imortalidade é uma dádiva concedida apenas aos deuses e que, como mortal, ele terá que enfrentar a morte. Assim, desiludido, o rei retorna à sua cidade, percebendo, ao observá-la ao longe, que a única forma de imortalidade permitida ao homem é dada através de suas obras, de onde, nos momentos finais da histórias, temos uma repetição do louvor à cidade de Uruk, apresentando a cidade e as muralhas erguidas por seu rei, que, à luz desse conhecimento adquirido, ganham um novo sentido, como apresentado pelo professor Jacyntho Brandão nos paratextos de sua tradução, publicada pela Autêntica.
Esse tipo de estrutura é bastante comum em mitos e lendas, tanto que foram uma das bases através da qual Joseph Campbell desenvolveu o conceito de Jornada do Herói, que é, por si só, uma estrutura cíclica. No futuro, pretendo falar um pouco mais sobre a estrutura da Jornada do Herói de modo que essa aqui vai ser só a primeira vez que falamos sobre ela.
Mas agora, você certamente vai estar se perguntando qual a conexão entre One Piece e a narrativa cíclica, certo?
Bem, e é aqui que começa a nossa conexão com o tema.
Para quem não conhece One Piece - ou só sabe que é um dos mangás/animes mais longos em circulação - vou fazer aqui um breve resumo:
Criado por Eiichiro Oda, One Piece conta a história de Monkey D. Luffy, um garoto que tem o sonho de se tornar o Rei dos Piratas. Para isso, ele recruta uma tripulação e saí em busca do One Piece, parte do tesouro do rei dos piratas Gol D. Roger, e que garantiria ao seu detentor o título de Rei dos Piratas. Ao longo do caminho, a tripulação de Luffy irá entrar em choque com outros piratas, a Marinha e até mesmo o Governo Mundial, entidade que esconde uma série de segredos sobre o passado do mundo.
Feito esse resumo, vamos falar sobre uma das características mais interessantes de One Piece que são os ciclos. Como um grande amigo bem definiu uma vez, os ciclos são uma parte fundamental em toda a obra. Mais especificamente, o grande ciclo composto pelo sonhar, realizar o sonho, não concluir e por fim passar o seu sonho adiante até que alguém que seja o herdeiro correto o realize, pondo um fim no ciclo atual e iniciando outro.
De fato, essa própria natureza cíclica da obra se encontra cristalizada na que talvez seja a frase mais famosa de Gol D. Roger, o primeiro Rei dos Piratas, e responsável pelo início do ciclo atual:
Existem três coisas que não podem ser interrompidas: o sonho dos homens, o fluxo do tempo e a vontade herdada, enquanto as pessoas continuarem buscando o sentido da liberdade tudo isso jamais deixará de existir.
Assim, todo One Piece gira em torno de um grande arco representado pela jornada de
Luffy para se tornar o Rei dos Piratas e seu choque com o Governo Mundial. Esse arco principal, por sua vez, se refletirá em boa parte dos arcos menores, onde, geralmente, a tripulação visita um país que se encontra sob o governo cujo governo legítimo foi usurpado, dando assim início aos confrontos que culminarão com a libertação daquele país e à restauração do governo de direito.
Mais do que fornecer uma moldura narrativa, esses ciclos também podem ser percebidos nas próprias ações e reações de alguns personagens que, cientes ou não, dão continuidade aos ciclos iniciados antes deles.
E para provar esse ponto, trago aqui um dos meus momentos favoritos da série: A Guerra dos Melhores, arco de histórias que se passou entre os capítulos 552-580 do mangá, e entre os episódios 461-489 do anime.
Pois bem, antes de começarmos, aqui vai um breve resumo para que você possa se situar na Guerra dos Melhores e na discussão que vamos apresentar:
A Guerra dos Melhores foi um evento iniciado pela captura do pirata conhecido como Portgas D. Ace, parte da tripulação do pirata conhecido como Barba Branca, e irmão do protagonista da série, Luffy. Isso, por sua vez, colocará ambos os piratas, e seus respectivos bandos, em rota de colisão com a Marinha, gerando um conflito de proporções épicas que alterará sobremaneira o universo de One Piece.
Feito esse resumo, podemos começar com nossa pequena lição de anatomia.
Ah, antes que eu esqueça, termos spoilers à frente. E spoilers pesados.
Esteja avisado.
Então, retomando o texto:
Como já mencionei acima, One Piece é uma obra que tem por base ciclos, e no caso da Guerra dos Melhores, teremos um vislumbre bem claro disso através do arco do Barba Branca.
Um dos Quatro Imperadores (mais conhecidos como Yonkou) , o pirata Edward Newgate, mais conhecido como Barba Branca é também uma lenda viva no universo de OP, não apenas por seu nível de poder, carregando o título de "O Homem Mais Forte do Mundo", graças à sua habilidade e aos seus poderes, mas também por ter sido o grande rival do Rei dos Piratas, Gol D. Roger dentre os piratas de sua época. No entanto, diferente dos demais piratas, e do próprio Roger, o principal objetivo do Barba Branca nunca foi o de obter grandes riquezas ou de viver grandes aventuras, mas antes, construir uma família para si, sendo essa a natureza de sua tripulação.
No momento em que a Guerra dos Melhores se inicia, no entanto, temos um Barba Branca não apenas velho, mas vítima de uma doença até hoje não especificada. Essa condição foi plantada em capítulos anteriores de OP, e vem ter sua conclusão neste arco em particular. Mas, vamos por partes.
Mesmo velho e doente, o yonkou faz de questão de ir para a ilha de Marineford, a base da Marinha, para salvar Ace, um de seus "filhos", como como se refere aos membros de sua tripulação, decidindo liderar ele mesmo o resgate.
E é justamente nesse ponto em que o ciclo que o Barba Branca está reencenado começa a se tornar mais claro.
Pois, por mais que a decisão de Newgate de entrar na batalha, atacando diretamente à Marinha possa parecer, em um primeiro momento, uma bravata ou mesmo um ato de arrogância, à medida em que vamos avançado no arco, percebemos que o caso não poderia ser esse. Na verdade, essa decisão do personagem tem o intuito de restabelecer o próprio encerramento da história de Gol D. Roger, de modo a reiniciar o movimento iniciado pelo Rei dos Piratas.
Mas vamos por partes, sim?
Conforme é revelado em Sabaody Park, Gol D. Roger não foi preso pela Marinha. Pelo contrário, o lendário pirata se entregou à Marinha uma vez que estava com uma certa doença incurável. Prisioneiro da Marinha, o Rei dos Piratas foi executado, mas não sem antes proferir seu famoso discurso sobre o One Piece, dando assim início à nova era de ouro dos piratas, e garantido à Roger sua imortalidade.
Assim, o pirata não foi morto, mas antes, se sacrificou para dar início à nova era que, eventualmente ( como viríamos a descobrir beeeem mais tarde, no arco de Wano) traria o pirata que poderia revelar e utilizar o One Piece.
Acredito que, a essa altura, meu ponto já deve estar ficando claro mas, caso não esteja, separei aqui 2 vídeos bem interessantes, ambos do anime, que vão te ajudar a fechar a linha de raciocínio, isto é, caso você já não tenha feito essa conexão ; )
A Execução de Gol D. Roger:
Agora, peço que veja este outro vídeo aqui, mais especificamente a partir de 1:13
Entrada do Barba Branca:
Então, já pegou a ideia?
Se não, aqui vai a cola: apesar de parecer um evento inédito, o ataque do Barba Branca à Marineford nada mais é do que a repetição do ciclo iniciado por Roger ao se entregar para a Marinha.
Mas não se preocupa que isso vai ficar mais claro a medida que formos avançando. Antes, preciso só que você guarde que, até o momento, temos aqui 2 piratas de poder e fama lendários (I), ambos vitimados por uma doença incurável (II).
Agora, vamos voltar à Guerra dos Melhores com seus altos, baixos e muito baixos, para pegar os demais elementos desse ciclo.
Nos momentos finais da Guerra, após a morte de Ace e quando as forças do yonkou estão começando a ser sobrepujadas pela Marinha, o Barba Branca se coloca entre sua tripulação e seus inimigos, partindo a ilha entre eles. O que se segue é um dos momentos mais épicos e brutais de One Piece, onde o pirata, com uma quantidade absurda de ferimentos, enfrenta sozinho as forças da Marinha, ganhando tempo para que seus "filhos" possam fugir.
Nesse combate, Newgate também se vê atacado pela recém formada tripulação do Barba Negra, um de seus antigos tripulantes, que o ataca covardemente. Nesse ponto, porém, o lendário pirata já não consegue mais reagir, sentindo o peso combinado da idade, da doença e dos ferimentos recebidos. Em seus últimos instantes ele anuncia para todos os que estão lhe vendo e ouvindo que o One Piece é de fato real, e que aquele que o tomar será o Rei dos Piratas.
Terminado seu discurso, porém, o Barba Branca morre, ainda em pé, sendo acompanhado pelo seguinte elogio fúnebre:
Mesmo morto, mesmo com metade da face arrancada, o seu corpo se recusa a se curvar! Sua poderosa imagem, cortando através de seus inimigos, era realmente monstruosa…! No percurso de suas batalhas…ele recebeu 267 golpes de espada. O seu corpo aguentou um total de 152 balas…E nada menos que 46 balas de canhões o atingiram…! E nas orgulhosas costas desse homem lendário…Ou melhor, em sua vida inteira como pirata..Ele não mostra nenhum sinal de covardia!!!
Agora sim, podemos dizer que finalmente fechamos o ciclo, com a estrutura de narrativa cíclica sendo:
I) 1 pirata de poder e fama lendário;
II) Esse mesmo pirata se encontra vítima de uma doença incurável;
III) O pirata escolhe como será sua morte;
IV) Ele utiliza o momento de sua morte para passar uma mensagem;
V) A mensagem deixada pelo pirata dá início a um novo ciclo, trazendo novos piratas para o jogo;
Agora, antes de prosseguirmos, vamos trabalhar um pouco mais sobre os pontos III, IV e V.
Assim como o próprio Roger escolheu se entregar à Marinha para ser executado, o Barba Branca escolheu participar de uma última e grandiosa batalha para encerrar sua vida. Essa similaridade de destinos fica bem clara no anime nas cenas que apresentei acima, onde Newgate é introduzido na série subindo uma escada - da mesma forma que o Rei dos Piratas subiu às escadas até o seu cadafalso.
Ainda que possa parecer um exagero, é preciso lembrar que um tema recorrente de One Piece, quiçá seu grande tema, é a busca pela liberdade, e essa busca se dá em seu sentido mais amplo: liberdade de sonhar, de viver, de lutar e, porque não, também de morrer.
Como pirata, o Barba Branca, assim como Roger, é um representante daqueles que escolheram seguir a liberdade, desafiando assim a ordem e a vontade do Governo Mundial e da Marinha. Assim, tendo sempre vivido sob a bandeira da liberdade, nada mais natural que a ele também caiba a escolha sobre sua morte, podendo, desse modo, conferir um significado para sua morte que, de outra forma, seria apenas um acontecimento vazio.
Esse significado, por sua vez, consegue dar novo fôlego à vontade final do Rei dos Piratas, renovando o interesse dos piratas do mundo pelo One Piece, e lançado, assim, uma nova era de ouro para os piratas, até o ponto em que surja o escolhido capaz de realizar o desejo de Roger.
Lembrando que o caso do Barba Branca é apenas um exemplo dos vários ciclos em One Piece. Uma vez que este texto aqui já ficou bem grande, infelizmente terei que deixar esses outros exemplos para um próximo texto, principalmente se este aqui for bem recebido.
Agora, um ponto que precisa ser frisado é o de que os ciclos não ocorrem de modo consciente. Apesar de serem bem perceptíveis quando vistos de fora, isso geralmente ocorre uma vez que os mesmos já estejam bem adiantados, ou mesmo concluídos. Não só isso, é importante lembrar também que os participantes dos ciclos não agem com a intenção de repeti-los.
De fato, da mesma forma que acontecerá com a questão do propósito herdado, que será um dos responsáveis por inicia-los, os ciclos são uma força que se encontra além da percepção dos próprios personagens, movendo-os muitas vezes sem que os mesmos percebam o que estão realizando. É isso, por sua vez, que reforçará o papel de Luffy como aquele que encerra/conclui ciclos - o que, ironicamente, é o próprio ciclo em que o personagem se encontra envolvido.
No entanto, teremos casos em que esses ciclos serão conduzidos de forma consciente, com o seu executor tendo a intenção de retomá-los/encerrá-los, se auto intitulando como o herdeiro do propósito condutor. Nesse caso, não temos o executor legítimo de tal ciclo, de modo que o mesmo tenderá a permanecer inconcluso, como no caso do ciclo do Joy Boy, cujo ciclo, ainda hoje, permanece inconcluso.
Em um texto futuro, pretendo discutir um pouco mais essa questão do propósito, assim como o modo como o mesmo se insere na narrativa cíclica de One Piece. Mas por ora, acho que você já tem coisas o suficiente para pensar enquanto esperamos pacientemente pelos novos capítulos dessa saga maravilhosa ; )
E por hoje é só!
Então, ao longo do texto, mencionei uma série de livros e mangás que foram importantes para o desenvolvimento da linha de argumentação deste artigo.
Abaixo, você pode conferir os links dos mesmos na Amazon. Lembrando que, ao comprar por eles, você estará dando uma grande força para este site - e para este aqui que vos escreve = )
Epopéia de Gilgámesh
One Piece Volume 1
One Piece ( 3 em 1 ) Volume 1
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